Brasília, símbolo do modernismo e Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, é caracterizada por vias expressas e poucas calçadas, priorizando o trânsito de automóveis. A cidade é visualmente impressionante, mas pouco acolhedora para quem anda a pé. Andar a pé em Brasília é um ato de resistência. Eu, criado no Rio de Janeiro, cidade em que insistentemente dizendo que “dá para ir a pé” para qualquer lugar, mudei completamente de ideia quando me mudei para cá.
Andar a pé por aqui dá preguiça. “Tudo é muito longe”. Um dos motivos é o fator visual por meio do qual enxergarmos o horizonte (devido ao fato de estarmos no planalto). Quando você enxerga a distância no horizonte, sem morros que estabeleçam grandes fronteiras pelo caminho, a preguiça vence.
Mas uma das coisas que me chamaram atenção, num primeiro momento, foram os caminhos desalinhados produzidos naturalmente pelo ser humano pela grama.
Observe a imagem abaixo:
Quem foi o primeiro transeunte que decidiu cortar caminho justamente a esta altura? E, para ter desgastado tanto a grama, certamente não foi uma pessoa só. Depois que a grama some, eu até entendo o fato de que as pessoas, em um efeito boiada, passem a seguir esse atalho. Porém, até a grama se desgastar, é um fato intrigante esta linha ter surgido do nada. A partir do desgaste da grama, nasce o caminho.
O brasiliense, com seu toque niemeyeriano, interveio na arquitetura da cidade planejada e tombada e construiu sua própria calçada, com linhas geométricas construídas de acordo com o seu desejo geográfico, sem necessidade de licitação para obras superfaturadas.
Após essa reflexão, eu pesquisei e descobri que isso tem nome: linhas do desejo (ou caminhos do desejo), que nada mais são do que trilhas informais criadas pelos passos dos pedestres em busca de rotas mais diretas e convenientes.
Esses trajetos são uma expressão popular da criatividade e da necessidade prática. Eles conectam paradas de ônibus, edifícios e espaços públicos, muitas vezes ignorando calçadas pensadas mais para agradar a visão aérea do que para facilitar o uso cotidiano.
O resultado é um tecido vivo de interação entre as pessoas e o espaço urbano, mostrando que, mesmo em uma cidade tão meticulosamente planejada, o cotidiano encontra formas de se sobrepor à teoria. A dinâmica cotidiana triunfa sobre a rigidez da teoria brutalista.
Para o brasiliense, essas trilhas representam mais do que um simples atalho: elas simbolizam apropriação e resiliência. São marcas do espírito de adaptação de quem vive em uma cidade projetada para o carro, mas que precisa ser navegada a pé. É como se o cidadão dissesse: “Essa cidade também é minha, e vou adaptá-la à minha realidade”.
Tudo isso reflete uma espécie de diálogo entre o ideal modernista (com toques do brutalismo soviético) e a prática diária. Ele deixa claro que as cidades não são estáticas, mas construídas e reconstruídas continuamente por aqueles que nelas habitam. Assim, os caminhos pela grama, com sua aparente simplicidade, contam uma história rica: a do brasiliense que, com passos persistentes, deixa sua marca em uma cidade icônica e monumental.
Professor Fabrício Dutra Professor de língua portuguesa há nove anos, formado pela UFRJ. Nasci no Rio de Janeiro, mudei-me para Brasília em 2012, e foi a cidade onde minha carreira começou de verdade. Ministrei aulas de Língua Portuguesa principais cursos preparatórios da capital dos concursos e já ajudei milhares de alunos a conseguirem algo que eles, de certa forma, perderamm impossível: aprender Gramática da Língua Portuguesa e fazer uma em condições reais de passar.